27 de abril de 2011

A introspecção valorativa da sociedade

A crise que temos é muito mais profunda que a questão financeira e política. É uma crise de valores morais. O materialismo é o dogma que impera nas relações humanas consubstanciado na premissa do consumismo e na maximização do bem-estar individual.
Se olharmos os primórdios da ciência económica, a economia aparecia nos ramos das ciências morais e políticas.

Adam Smith escreveu que “o homem sábio e virtuoso está sempre disponível para sacrificar o seu próprio interesse privado ao interesse público da sua ordem ou sociedade” “não ao amor do vizinho, nem ao amor da humanidade. É o amor pelo que é honroso e nobre, pela grandeza, e dignidade, e superioridade dos nossos próprios carácteres”, ou seja, maximizando o lucro respeitando os princípios éticos fundamentais.

Alfred Marshall um dos economistas mais importantes na viragem do sec. XIX para o sec. XX escreveu no seu livro “Princípios de Economia” que “o carácter do homem tem sido moldado pelo seu trabalho de todos os dias e pelos recursos materiais que desse modo procura, mais do que qualquer outra influência, com a excepção dos seus ideais religiosos”, acrescentando que “a actividade pela qual uma pessoa ganha o seu sustento preenche geralmente os seus pensamentos durante a maior parte das horas em que a sua mente se mantém activa; durante essas horas o seu carácter vai sendo formado pelo modo como aplica as suas faculdades no trabalho, pelos pensamentos e os sentimentos que lhe sugere, e pela forma como se relaciona com os seus companheiros de trabalho, os seus patrões ou os seus empregados”. No fundo colocava a economia no centro da vida do Homem através do modo como a acumulação da riqueza era gerada, apenas acreditava que era superada pelo seu credo religioso. Considerando que a economia é o estudo do comportamento e do carácter do homem tendo em conta a obtenção e gestão da riqueza adquirida, não deixava de concluir que o comportamento do homem é por natureza moralmente orientado, concretizado nas decisões e escolhas que toma. O homoeconomicus tomava as suas decisões de acordo com uma hierarquia de valores previamente matizados na sua consciência moral, constituindo esta moralidade uma barreira de não transgressão.

Com o avanço da modernidade, os valores morais suportados pelas verdades religiosas foram postos em causa, e mesmo destruídos, pelo racionalismo emanado do iluminismo proveniente da revolução francesa. E pelo avanço do liberalismo ancorado na maximização da riqueza e do culto do indivíduo. Sem esquecer a realidade histórica das sociedades, que tentaram implantar infrutiferamente um socialismo científico e materialista, cuja religião não constava das matizes a incorporar na racionalidade dos cidadãos.

Lembremos Hegel. Advogava que a liberdade dos indivíduos não devia sobrepor-se à eticidade colectiva, nem à razão universal. No fundo, o colectivo fundeado no estado deveria sobrepor-se à vontade do individuo, e a vontade de uma sociedade de estados devia se sobrepor à vontade individual de um estado membro. O conceito de liberdade individual devia incluir as suas consequências e condições colectivas, liberdade democrática. Este conceito encontrava-se no extremo oposto da liberdade liberal, que se caracteriza pela liberdade sem limitações, com a desregulamentação das relações dos indivíduos, com a subordinação do estado aos cidadãos, com limitação à vigilância estatal, com predomínio político da vontade individual e com a interpretação do jogo político livre a partir da concorrência dos diversos interesses particulares em jogo. Veja-se a desregulamentação da limitação da alavancagem financeira nos U.S.A. que levou à bancarrota de bancos de investimento em 2008.

Como curiosidade. Para Hegel a democracia parlamentar tal como existe é um logro, representa apenas a clubite partidária e não a legítima representatividade dos cidadãos. A democracia só é possível com e pela via da presença constante dos cidadão de modo a velar pelos bens públicos como se dos próprios se tratassem, de modo a evitar que alguém ou grupo se apropriem dele. E isso, só foi possível na Grécia Antiga, uma vez que a escravatura tornou os atenienses livres para se comprometerem na governação dos destinos das cidades-estado. Já o ateniense Sócrates, em República de Platão, desconfiava da democracia enquanto a melhor forma de organização do estado, pois o descontrolo levado a cabo pela excessiva liberdade individual matava a democracia consubstanciado no enfraquecimento da autoridade e na degradação moral da sociedade, acabando por levá-la à mais infame etapa de governação: a tirania. Toda esta desconfiança é-nos familiar na actualidade.

Uma das criticas do Hegel ao liberalismo, é o facto de tenderem a levarem os seus princípios para além dos campos políticos e económicos, penetrando no campo religioso, e das crenças do povo, negando o papel especulativo e educador da religião. Considerava a religião também um saber absoluto, e ao ser ainda representativo, emotivo e sensível, era mais acessível ao povo. A liberdade de consciência e de fé religiosa era um dos direitos básicos de todo o cidadão, contra a qual determinada modernidade iluminista radical agiria. A filosofia e a religião têm a verdade como objecto e certamente no sentido mais elevado, em que Deus é a verdade e apenas ele é a verdade. A filosofia procurava Deus pela razão, o senso comum pela coerência do discurso do dogma. Assim valorizava o papel da religião como um racional de compreensão da verdade, esta antecipa-se à filosofia na revelação do absoluto. A verdadeira religião e a verdadeira religiosidade provinham da eticidade. A religião é entendida por todos e é apreendida mais cedo, a filosofia tendia para as elites.

O combate à religião levado a cabo nos últimos dois séculos levou-a à sua menorização como fundo educador da população. Lembremos o pensamento hegeliano “a religião é entendida por todos”. Gandhi escreveu também que “a essência da religião é a moralidade”. Os valores morais intangíveis, que norteavam as decisões, foram gradualmente postos em causa, deixando um vazio que norteia as actuais referências da nossa sociedade. Nesse vazio, a riqueza material e a ostentação tornaram-se objectos de culto social, orientando os comportamentos sociais na sua direcção. Por isso, quem ousa optar por outros princípios terá resultados inferiores, terá menor remuneração, será perdedor e sairá da competição substituído por outro. A obtenção de resultados materiais favorece os decisores menos dados a preocupações éticas, e, quando o reconhecimento social favorece mais os resultados do que os meios para os obter, os decisores económicos tendem a ajustar os seus comportamentos por condutas menos escrupulosas. Na ética empresarial, este cultura reflecte-se no alcançar dos resultados imediatos, trimestre a trimestre. Esta política métrica tornou-se quase uma obsessão dos gestores que a esse objectivo transitório tudo sacrificam. Esta obsessiva competição, em particular no sector financeiro, levou a descurar a sustentabilidade das empresas e a transgredir regras de comportamento de boa gestão: assumir riscos excessivos, abusar da boa-fé e confiança de terceiros, esconder as perdas ou exagerarem os ganhos com artifícios contabilísticos falsificando as contas. Isto colapsou o mercados.

Também os estados e os indivíduos descuraram a opção pela prudência e pela sustentação da sua existência, o padrão da poupança presente que não é mais do que a transferência de riqueza do presente para o futuro, optando pela maximização do bem estar presente, sacrificando a riqueza presente e hipotecando o futuro através da irresponsável política de endividamento cujo pagamento está dependente de rendimentos futuros e incertos.

Dan Ariely Num, especialista em economia comportamental, levou a efeito um estudo no MIT, universidade americana, tendo por base os estudantes norte americanos desta faculdade com objectivo de avaliar a sua disposição para transgredir as regras de boa conduta social. Dividiu os alunos em dois grupos, sendo ao primeiro grupo pedido que citassem dez livros que tinham lido no liceu, e ao outro grupo que citassem os Dez Mandamentos que a custo lá foram dizendo alguns. Depois de fazer a experiência, os indivíduos deste segundo grupo não transgrediram ao contrário do primeiro grupo. Para extrapolar os resultados libertando-os de carga religiosa, voltou a inquirir estes dois grupos novamente sujeitando o segundo grupo a assinar que “tenho conhecimento de que este inquérito é sujeito ao código de honra do MIT” (apesar do MIT não haver nenhum código de Honra). Novamente no segundo grupo ninguém voltou a ter comportamentos de transgressão. Isso permitiu concluir que um código de conduta moral fortemente implantado na consciência das pessoas gera nestas comportamentos mais responsáveis.

Isto confirma que os valores éticos e morais são essenciais à preservação da liberdade dos indivíduos e à sobrevivência dos próprios estados, ou das comunidades que os agregam e das organizações onde actuam. Os estados, as organizações e os indivíduos tomam decisões e estas sobressaiam nas escolhas feitas que dependem do horizonte que se pretende almejar. As escolhas que apenas se limitam à solução técnica estão condenadas ao fracasso a longo prazo, e o egoísmo que muitas vezes escondem, podem conduzir a humanidade a uma nova catástrofe. Lembremo-nos do curso da História, as rivalidades, os individualismos, os nacionalismos, os sonhos dos grandes impérios levaram a Europa às ultimas duas guerras mundiais. A ética, a política, a religião e a filosofia devem voltar a ser um dos pilares do ensino de modo a formar melhores cidadãos, pois não podem ser entidades com o propósito de apenas criarem peças para a engrenagem capitalista, parafraseando Marx. E um mundo pejado de bons cidadãos será um mundo melhor que o actual.

Referências bibliográficas
Vitor Bento, Economia, Moral e Politica
Gonçal Myos, GWF Hegel,
Platão, República

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